A Folha de S. Paulo publicou uma reportagem que dizia que dezenas de milhares de "vacinas vencidas" foram aplicadas nos brasileiros. Não foram — ou ao menos não no número sugerido pela assertiva chamada e o texto que se seguiu.
O erro primário ali foi não validar os dados levantados no DataSUS — nem por meio de uma disciplina estatística básica (investigando pontos fora da curva, como a cidade de Maringá) nem com boa e velha reportagem, contatando prefeituras que tinham números suspeitos. Autores e alguns colegas defenderam que era importante jogar luz no problema de dados inconsistentes na saúde. Até é, mas não era isso que a reportagem fazia. Mudar o título posteriormente não fez com que o foco magicamente fosse alterado.
A discussão sobre a reportagem que se sucedeu, particularmente no Twitter, foi muito centrada nas questões de jornalismo de dados, letramento estatístico e viés de confirmação — todas pertinentes. Mas em minha opinião a reportagem evidencia outro problema, menosprezado: a falta de uma preocupação em minimizar o dano na prática jornalística.
Essa ideia está cada vez mais presente em debates sobre ética jornalística mundo afora — mas é pouquíssimo explorada no Brasil, especialmente na mídia mais tradicional. A ideia corrente aqui parece ser dar a notícia "doa a quem doer", sem muita discussão sobre consequências. Essa mentalidade está presente por exemplo no Projeto Editorial da Folha que vigorou até 2019, que dizia: "A prioridade máxima do trabalho jornalístico continua sendo divulgar a informação exclusiva: o fato relevante, inédito e bem apurado que um veículo revela."
A impressão que tenho é que a preocupação sobre como leitores ou a sociedade em geral podem receber uma notícia é, na melhor das hipóteses, secundária nas redações. O máximo que se vê são avisos de "imagens fortes" antes de um vídeo de uma pessoa morrendo ou "alertas de gatilho" em reportagem que descreve em detalhes um caso de violência sexual. Práticas recentes e bem-vindas, diga-se. Mas é preciso uma consideração maior.
Profissionais de saúde estão familiarizadas com o aforismo Primum non nocere, de Hipócrates. A ideia de "primeiro, não prejudicar" é também cada vez mais discutida em campos como inteligência artificial, bioética, educação ou basicamente qualquer atividade em que a pergunta "E se o que eu tô fazendo na melhor das intenções der ruim?" se apresenta.
Não é preciso muita imaginação para ver como o conceito se aplica ao jornalismo, especialmente no caso #vacinavencidagate. Vamos supor que você, cientista de dados (quem não é hoje em dia?) esteja olhando a base do DataSUS e ache indícios de que existe um problema de aplicação de doses de vacinas potencialmente fora do prazo de validade.
O benefício para a sociedade parece evidente: é preciso denunciar falhas do governo (para que sejam corrigidas) e alertar as pessoas que tomaram doses vencidas (para que sejam revacinadas).
Mas este potencial benefício (novamente, em um cenário hipotético em que há de fato um grande número de irregularidades do tipo) deve ser equilibrado com outras considerações.
Aqui iria a minha checklist, que incorpora a noção de redução de danos às melhores práticas de edição:
— Qual é exatamente o problema, e qual o risco de caracterizá-lo de forma imprecisa? Uma chamada factualmente correta seria "análise preliminar dos dados sugere que alguns brasileiros receberam vacinas que podem ter eficácia reduzida". Condicionais que explicitam a incerteza não geram cliques, mas também geram menos estresse. Qualquer médico prestes a dar um diagnóstico mais grave sabe disso.
Para além disso, o termo "vencidas" é tecnicamente correto mas pode ser lido como "estragadas". Pois nada sugere que vacinas fora do prazo façam mal — tanto que diversos países alteraram a data de vencimento delas. Vacinas fora do prazo de validade podem sim perder a eficácia, e por isso é recomendado a revacinação. Mas a escolha de um termo como "vencida" em um contexto de pandemia é consequente. É importante ter empatia e pensar o que a outra vai ler, e o nível de alarme que a pessoa terá quando se deparar com esta "informação" na capa de um jornal. "Milhares tomaram o veneno, veja se você é um deles" gera estresse desmedido e desnecessário.

— Se for efetivamente um problema, qual o risco de não comunicar corretamente a sua dimensão? Enquanto escrevo, ao menos 3 bilhões de doses de vacinas contra a Covid foram aplicadas no mundo. É provável, estatisticamente, que mais de uma centena de pessoas tenham morrido por efeitos adversos causados pela imunização. Isso não faz das vacinas menos seguras que medicamentos que usamos no cotidiano. Jornalistas e divulgadores científicos em geral têm tido na média bastante cuidado em dimensionar a raridade de problemas com vacinas, não para "esconder a verdade", mas para não exagerar algo explicável e afugentar as pessoas da tão necessária campanha de imunização. Se a reportagem da Folha fosse mais cuidadosa e tivesse considerado o potencial de estresse que a notícia causaria, teria colocado a potencial falha em perspectiva — afinal, ela teria ocorrido em 0,039% das aplicações da vacina. Quanto vale o clique, dado o potencial dano?
— A pessoa que leu poderia fazer algo, além de entrar em pânico? A chamada da reportagem originalmente dizia "Milhares no Brasil tomaram vacina vencida contra Covid. Veja se você é um deles". Qual seria o call to action, como gostam os marqueteiros, ali? Que todo mundo que se vacinou deveria agora checar o cartão de vacinação, e conferir se A) a dose tomada pertencia a um lote maldito e B) se a data de aplicação foi posterior à data de validade. Não era algo trivial por exemplo para pessoas mais idosas, que pediram ajuda de filhos e netos para decifrar garranchos. Fora que o preenchimento dos cartões de vacinação é bastante irregular pelo Brasil. Alguns postos só fornecem o tipo de vacina e a data — teoricamente tudo que a pessoa precisaria. Ao deixar a responsabilidade de checar se tinham sido "sorteados" na mão de milhões de brasileiros que não estavam necessariamente equipados, a reportagem pode ter gerado um sem-número de visitas inúteis a postos de saúde. Não seria possível antever essa consequência?
— Um jornal de alcance nacional é o melhor foro para isso? Essa pergunta pode parecer alienígena a jornalistas. Mas se a notícia que você vai dar afeta muito um pequeno e bastante específico grupo de pessoas, e praticamente só ele, não seria o caso de avisar a prefeitura para contatar os venci-vacinados? A reportagem ficou duas semanas sobre os dados. Ela poderia muito bem alertar as prefeituras com o maior número de casos primeiro, durante a apuração. Antes de publicar, ela faria o follow, checaria com essas prefeituras se algo foi feito — idealmente indo para uma ou outra cidade conferir. Seja qual fosse o desfecho, teríamos uma matéria mais consistente, sem gerar pânico. Manchete possível: "Falhas no sistema de dados de vacinação geram confusão em prefeituras." Linha fina: "Inconsistência nos dados fez ao menos 15 municípios investigarem aplicação de vacinas fora da validade. Registros precários reacendem a discussão sobre dados de saúde."
Consigo pensar em várias outras perguntas possíveis, mas não quero aborrecer ainda mais os visitantes que estão chegando agora ao recém-criado blog (Blog! Em pleno 2021!). Mas deixo como sugestão a leitura desta parte do Código de Ética da Sociedade dos Jornalistas Profissionais dos EUA (SPJ). Não há nada parecido no código equivalente do Brasil. Precisamos atualizá-lo.
